segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Liso como fios de nylon


Ideologicamente eu seria contra transar com mulher bi, mas é difícil delimitar a fronteira. Lições iniciais da vida lésbica: a) há inúmeras mulheres lindas no mundo hetero, mas acreditar que estão acessíveis é imprudente; b) vestir-se como hetero requer estômago e paciência para cantadas indevidas; c) existem lésbicas viciadas em hetero, mas para uma feminista isso é existencialmente frustrante. Nem todas as lésbicas são militantes e nem todas são feministas, mas sempre considerei desejável um certo purismo. Nunca tive paciência para mulheres hetero frustradas-com-homem-sonhando-que-talvez-uma-mulher-seja-mais-sensível. Em linhas gerais, eu sabia disso quando conheci Agnes. Tinha 26 anos de vida, dez anos de estrada, tinha visto coisas. Os bares da antiga, em Osasco, o antigo mundo de sapatão e damas. As boates gays de São Paulo, travestis, submundo, deboche e sentimentalismo, depois os modernos, e a primeiras lésbicas modernas no final dos anos 1990, o revolucionário surgimento das salas de bate papo e encontros de internet. Em 1997, quando fui morar com Agnes, começava o mundo de hoje, a festa esquentava e eu saí de cena. Mas a causa era justa, o sonho de uma humilde sapatão de periferia: a mulher fina e madura, bonita desde que nasceu, bonita para sempre. Mesmo com consciência de classe eu não conseguia resistir aos seus cabelos lisos como fios de nylon, que eu erguia entre os dedos e eles caíam, em vez de ficarem onde deixei.

sábado, 24 de novembro de 2012

Um cara acima da média


A responsabilidade da iniciativa e a necessidade de dominação eram problemas nunca resolvidos entre nós. Eu fiz sexo com homens, algumas vezes, no fim da adolescência. Eu gostava de skate e praticava com os garotos mais velhos do bairro. Vitor era o melhor do grupo, nariz torto e corpo fantástico, rei das manobras. Sujeito independente e sensato, e gostava de mim. Mesmo em roupas masculinas, eu tinha o corpo bonito e era difícil ficar na minha. Ele ajudava, não deixava os caras mexerem comigo. Nós ficamos algumas vezes, sem nenhum plano, durante um tempo. Ele transava bem e cheguei a imaginar que talvez eu pudesse ser hetero sem saber. Na faculdade transei com outro cara, para tirar a dúvida, foi um desastre e cheguei à conclusão que Vítor foi pura sorte, um cara acima da média, o tipo de cara que uma lésbica poderia gostar. Eu imaginava o sexo hetero a partir de Vitor. Ser a moça e bonita, a mulher de um cara. Muitas vezes foi útil, porque as meninas bonitas gostam de sentir daquele jeito, e eu sabia como fazer. Funcionava na pegação, mas bancar o macho da gatinha não se sustenta por muito tempo. Eu sabia como era transar com uma sapatão de verdade.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Terreno natural


Estava quase escuro quando chegamos na casa em Gonçalves. Deixamos as bolsas no quarto, os pacotes de comida na pequena mesa da cozinha. Não havia televisão nem internet, apenas a sala pouco confortável, o terreno natural e pouco bonito ao redor. Eu não tinha vontade de conversar, nem ela. Sem entusiasmo ou suspiros de satisfação. Fizemos o que era certo para recuperar a intimidade entre nós: conseguimos a casa, arrumamos a bagagem, percorremos a estrada, chegamos. Mas não havia televisão. Abri uma garrafa de vinho, bebemos duas na sequência e falamos bastante, coisas engraçadas e ácidas sobre outras pessoas, como duas colegas de trabalho que mal se conhecem, num almoço forçado em que o único assunto é ridicularizar quem não está presente. Ela dormiu antes, eu estava tão bêbada que via o teto baixo de madeira oscilar sobre a cama. Dormi sem perceber, e acordei de repente algumas horas depois, no meio da madrugada. Virei algumas vezes na cama, sem sono, e o corpo meio despido de Agnes me deixou excitada. Encaixei-me por trás dela e acariciei suas coxas, depois comprimi seu corpo todo, com mais força, ela não resistiu. Montei por cima dela que abriu parcialmente os olhos, gemendo um pouco. Dobrei suas pernas abertas e passei saliva, enquanto me movimentava, deixando-a mais molhada para mim. Quase gozando eu a virei de bruços, eu já inchada e úmida, gozei algumas vezes me esfregando em sua bunda. Ela estava acordada, e não queria parar. Usei meus dedos, ainda por cima dela, penetrando na frente e atrás ao mesmo tempo, como se a agarrasse por dentro, pressionando sempre a virilha sobre ela, até sentir seu interior latejar. Isso durou muito tempo, e no outro dia, com dor de cabeça, algumas imagens da noite piscavam em minha memória, como se tivesse acontecido num passado remoto.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Caminho íngreme


Existem casais que sobrevivem anos aos gritos e insultos, convivendo com a raiva. "Sai da minha vida", "Nunca mais quero te ver na minha frente", "Eu te odeio". Em outros casos, tudo pode ser dito, menos as palavras de ruptura. Porque uma vez pronunciadas, ou mesmo pensadas, elas se infiltram na ilusão que mantém aquele casal unido, em lenta corrosão, erodindo o solo até cair o barranco.

Em novembro haveria um feriado de seis dias, pois a Proclamação da República caía numa quinta-feira e o dia da Consciência Negra numa terça. Decidimos viajar juntas. Saímos de carro para Gonçalves, uma cidade pequena na fronteira com Minas Gerais, onde uma amiga de Agnes tinha uma casa. Depois do centro da cidade, subimos a montanha por uma estrada sem calçamento. Um caminho íngreme, com muitas curvas e pedras, entre árvores altas. A casa ficava num sítio rústico, sem jardim, apenas mato e alguns arbustos entre pedras. Tinha dois cômodos, colchão e almofadas no chão, e o banheiro do lado de fora.

Fazia algum tempo que Agnes não gozava comigo, sem um vibrador. No início ela se excitava facilmente. Eu a abraçava, beijava seu pescoço, e quando tocava suas partes já estavam úmidas. Durou alguns meses, depois que mudei para seu apartamento. Morando juntas, a excitação ficou mais lenta. Algumas vezes eu era romântica, fazia carícias por muito tempo em seus peitos, umbigo e coxas. Outras vezes a prendia por trás, prendendo seu corpo em posição que não pudesse reagir. Eu tinha alguns cremes, gel e acessórios, fechados numa caixa decorada, com cadeado, na gaveta da cômoda perto da cama. Passamos por fases diferentes. Em certos períodos, ela pedia mais carinho e menos força. Em outros, pedia autoridade, domínio, sem perguntas que precisasse aceitar ou negar, simulações de estupro. Na maioria das vezes, ela só tocava em mim quando já estava muito comida e gozada. Em transe, olhos dilatados e fundos, como se fosse outra pessoa, me comia e chupava. Muitas vezes eu a chupei tecnicamente, sem excitação, porque queria mantê-la satisfeita, ou mesmo entediada eu gostava de ver ela gozar. Ela não se preocupava com meu gozo, mas com meu interesse. Se ficávamos algumas semanas sem transar, fazia perguntas e cobrava. "Você perdeu o desejo por mim?", "Você cansou de mim?". Mas depois de alguns anos, aos poucos, ela parou de cobrar. Quando eu a acariciava, ela cortava logo alegando que não tinha vontade. Ou prosseguíamos, eu chupava, e no meio ela dizia que não estava funcionando, e pedia para eu usar o vibrador.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

As normas antigas


Eu sempre acordava cedo, mesmo nos fins de semana, raramente me sentia sonolenta. A passagem entre o sono e o dia era rápida para mim. Num instante estava dormindo, minha cabeça ligava, eu abria os olhos e estava disposta. No primeiro ano juntas, os fins de semana sozinhas eram raros. O pai do Bruno foi trabalhar numa empresa de aviação em São José dos Campos, logo depois do divórcio. Ele fazia viagens a trabalho, e constantemente desmarcava seus finais de semana quinzenais com o filho. Bruno ficava dois ou três meses direto conosco, sem ver o pai, e Agnes tinha pena de deixá-lo com sua mãe. "Ele sente a rejeição do pai", dizia, "não posso fazer o mesmo. Uma criança precisa ser importante para alguém no mundo. Ele precisa se sentir protegido em algum lugar". Meu tempo com ela era possível apenas quando fosse preenchida a lista básica de necessidades do Bruno: comeu, brincou, estudou, descansou. Então podíamos sair, mas Agnes estava sempre cansada. Nos raros fins de semana em que o pai aparecia, e Bruno dormia com ele duas noites seguidas, podíamos acordar juntas e ficar na cama sem pressa. Eu acordava cedo e olhava com encanto Agnes que ainda dormia, deitada de lado, o braço caído entre a cintura e o colchão. Depois houve um período em que senti muito cansaço, e precisava dormir mais. Quando o cansaço passou, Agnes não queria mais transar de manhã.

- Eu não gosto de transar de manhã - ela disse.
- Mas sempre fazíamos isso.
- Eu fazia pra te agradar. Mas é difícil pra mim.

Antes de viajar, Agnes passou semanas ansiosa, as coisas caíam de sua mão, talheres, chaves, xícaras quebravam. Quando voltou parecia calma, mas falava pouco, e olhava pouco para mim. Eu já conhecia certos padrões. Ela raramente falava sobre seus mal-estares, mas sua expressão mudava. O rosto apagava, a boca caía. Se os silêncios se repetiam por alguns dias, eu perguntava: "Está tudo bem?", "Quer falar alguma coisa?". Às vezes vinham reclamações de cansaço, ou longos dramas de sua insegurança sobre um assunto ou outro. Passamos por muitos desses conflitos ao longo dos anos, mas concentrados se resumiam a três ou quatro: nossa diferença de idade, a reação de sua família ao fato de sermos duas mulheres, sua dificuldade em ser ativa no sexo, sua impaciência com o trabalho e a expectativa de mudança no sistema previdenciário, que poderia diminuir sua aposentadoria integral como funcionária pública, um privilégio que a levou a escolher a carreira, quando tinha trinta e dois anos de idade.

Segundo as normas antigas, levando em conta seus dez anos de trabalho anterior como bancária, Agnes se aposentaria aos cinquenta e dois anos de idade, em outubro de 2011. Em 2003, quando nosso casamento quase terminava, ela esperava ansiosa o tempo que faltava, apegada ao sonho de uma vida sem compromissos, com rendimento mensal vitalício, ameaçado pela iminente reestruturação financeira do Instituto Nacional de Previdência. No início eu estava incluída nos planos. Ela falava de viagens e lugares que poderíamos conhecer. Depois, creio, começou a fazer contas e imaginar outro cenário. Eu não tinha certeza, apenas deduzia. Em nossas discussões, aparecia às vezes uma opção de segurança, "caso a gente se separasse". "Se um dia você terminar comigo", ela dizia, "acho que eu passaria um tempo com o Bruno. Seria bom ficar um tempo sozinha." Ela usaria a aposentadoria para morar no Canadá, mais perto do filho, mais perto dos Estados Unidos e países europeus onde havia as intrigantes lésbicas saxônicas e eslavas, de meia idade, com as quais ela andava conversando pela internet. O plano alternativo aparecia com mais frequência em suas conversas - "se um dia você for embora", "se um dia você cansar de mim" - e aos poucos desconfiei que talvez o dia imaginário, em vez de um medo do abandono, indicava uma vontade literal, uma mensagem. "Não se prenda por mim. Você pode ir embora, já tenho outros planos".

domingo, 28 de outubro de 2012

Uma conquista admirável

Eu adoro mudar o contexto dos personagens e reescrever cenas. É incrível como as coisas se encaixam. Em vez de duas jovens descobrindo a vida, uma lésbica faixa-magenta apaixonada por uma ex-hetero recém divorciada. Trocam-se os detalhes e a história ainda funciona.

"As mesas estavam vazias e sentei no lado de fora. Agnes chegou com sua roupa de ginástica e falou algumas coisas da escola do filho. Então contei da corretora de investimentos que eu tinha encontrado na noite anterior.

- Corretora?
- Ele administra investimentos de uns milionários. Chegou com um bando de mulher fina lá no bar da Odete. Me convidaram pra uma festa.
- Quando?
- Ontem mesmo.
- E você foi?
- Fui.

Ela ficou quieta e depois me olhou desconfiada:

- Como assim, você foi?
- Eu fui. Você estava jantando com a sua mãe e eu não tinha nada pra fazer.

Ela quebrou uns palitos de dente. Estava repentinamente brava.

- Por que você me conta essas coisas?
- Achei que você ia gostar.
- Merda.

Eu estava com muita vontade de chegar perto dela, e com fome também. Mas não podia pedir nada enquanto ela estivesse magoada daquele jeito.

- Agnes, desculpa. Eu tava sozinha. Era um bar. Essas coisas acontecem. Minha mulher é você.

Ela foi se acalmando e segurei sua mão. Ficamos assim algum tempo e então ela perguntou se eu queria comer. Eu bem queria, mas meus dez reais eram uma triste piada. Olhei o cardápio pra checar o preço do pão de queiro. Agnes ficou boazinha e pediu um pedaço de torta pra mim.

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Nós precisávamos de um lugar. Minha linda kitchinete divida com o Marcos não ia rolar. Agnes não estava acostumada com gays. Ela estranhava os dois abraçados, um no colo do outro, se encoxando de brincadeira enquanto cozinhavam. Elas até simpatizava, mas ficava envergonhada e não conseguia relaxar. Sentava encolhida, não me beijava direito, não queria transar quando eles estavam lá. A cortina de lona que sempre serviu perfeitamente pra separar nossas transas era exposição excessiva pra ela, que precisava de um cômodo hermeticamente isolado do mundo exterior pra ter coragem de se soltar. Eu me atrasava no trabalho quatro vezes por semana, para transarmos às sete e meia da manhã, depois que o filho dela saía pra escola. Agnes queria que eu alugasse um apartamento só pra mim.

- Vai acabar com o meu salário. Não vou ter grana pra nada.
- Eu te ajudo - ela dizia.

Eu não ia assinar um contrato e depender do dinheiro dela. Apesar da sedução arrebatadora daquele corpo feminino e macio, eu considerava importante manter as portas desobstruídas e sinalizadas com barras antipânico. Mesmo imaginando um negócio fantástico que eu pudesse pagar sozinha, meu salário era baixíssimo e as chances eram mínimas.

Primeiro tentei o método tradicional: apartamentos vazios, oficialmente disponibilizados por seus proprietários para alugar. Andei por algumas travessas na baixa Augusta, olhava as placas e pedia para visitar. Eu não me importava com a qualidade, perguntava apenas o valor e as condições do contrato. As imobiliárias eram obsessivas com a palavra fiador e isso me deprimia. Minha família não estava no Estado de São Paulo há tempo suficiente para possuir nada na capital, e pedir para Agnes não era uma opção, pois eu queria que ela fosse minha mulher, não minha mãe ou alma caridosa.

Eu tinha orgulho de ter saído de Osasco, ter meu emprego e um lugar para morar no centro de São Paulo, onde havia gente iteligente e uma vida gay de dimensões suficientes para eu praticamente esquecer que havia um mundo não-gay. Eu tinha orgulho de ter conhecido Agnes, delicada e cheirosa, no momento perfeito em que ela estava divorciada e disposta a um novo amor - que podia ser justamente eu. Eu pretendia levar essa história até onde fosse possível, ignorando o fato de ela ser doze anos mais velha, e morar num apartamento bonito, e ter um emprego que pagava cinco vezes mais que meu salário. E um filho que poderia ser meu irmão temporão.

Andando sozinha, encontrei uma kitchinete sebosa numa travessa obscura atrás do Hospital Sírio Libanês. Preço acessível pelo motivo mencionado. Fui até o escritório do proprietário, que demonstrou gentileza surpreendente. Compreendeu que eu era recém-formada, a primeira da família a concluir um curso universitário, trabalhava como assistente pedagógica numa escola respeitada de classe média alta, era uma conquista admirável pra quem nasceu onde eu nasci. Meus pais moravam num conjunto habitacional em Osasco, o apartamento seria próprio e eles podiam ser fiadores se ele aceitasse o contrato de financiamento com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional como comprovante. Que espírito aberto, que disposição ao bom senso. Dentes bem alinhados, mãos macias segurando meu braço e oferecendo toda disponibilidade para ajudar. Disponibilidade deslizante e úmida. Nanão. Saí fora.

O Daniel e o Marcos ainda vieram com duas opções: uma república de uruguaias lésbicas e maconheiras, perto do aeroporto. Marcos conheceu as meninas no Clube Massivo e mostrou as fotos entusiasmado. Pela imagem desconfiei que não faziam muita questão de banho.

- Marcos, sem chance. Sou pobre mas limpinha.

Outra solução era morar no fundo de uma casa enorme e vazia, usada eventualmente em raves que andavam na moda entre os riquinhos da cidade. Ela conhecia o organizador do lance, colega de um primo que praticava tráfico sem fins lucrativos entre descolados.

- Mas, Marcos... quantas festas rolam?
- Ah, é improvisado. Me avisam pelo celular a cada dez, quinze dias.
- Meu lindo, cai na real: eu sou um jovem intelectual. Pobre mas intelectual. Admiro escrivaninhas limpas e louça lavada. Não vou morar numa Woodstock domiciliar da elite paulistana.


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Uma opção óbvia seria contar para o Bruno, filho da Agnes. Afinal ela estava divorciada havia dois anos e tinha o direito teórico de levar seu par romântico para casa. Mas aí vinha o problema de o par romântico ser uma mulher.

- Quando você contar pra sua mãe, eu conto pro meu filho - Agnes dizia.
- Eu conto, claro. Vamos curtir duas horas de trânsito e transar na casa dela.

Agnes se irritava, passava dias sem me ligar. Quando voltávamos a conversar, era sempre a mesma briga sobre ela assumir ou não assumir, se estava de brincadeira comigo, ou só estava me usando pra matar a carência e não tinha a menor intenção de nunca me incluir em sua vida real. Discutíamos pelo telefone durante horas depois que Bruno ia dormir, e no dia seguinte eu chegava na casa dela às sete e meia da manhã, depois que Bruno ia para escola, e transávamos loucamente e chorávamos abraçadas até eu sair para o trabalho.

Eu não conseguia entender sua barreira. Ela era feminista, militante, tinha várias amigas lésbicas e dizia com segurança que só casou com um homem porque na juventude não tinha referências para sequer imaginar que existisse uma vida homossexual possível. Suas roupas habituais, desde quando era casada, seriam sossegadamente aceitas numa comunidade: cabelo curto, sem maquiagem, camisa de botão e sandálias alemãs. Não era tudo evidente? Por que ela não podia contar o que o filho naturalmente iria descobrir? Não era mais fácil explicar agora, enquanto ele ainda era criança, do que esperar a adolescência quando tudo seria mais difícil?

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Um dia juntei toda minha serenidade. Eram oito e quinze da manhã, estávamos peladas, abraçadas na cama dela, depois de quarenta minutos de atividade aeróbica.

Fiz uma pausa. Comecei.

- Agnes, nosso esquema não está funcionando. Eu me atraso para o trabalho todos os dias. Eu ganho pouco mas eu gosto de lá, tem muita coisa pra eu fazer e crescer. A dona da escola é compreensiva mas tudo tem limite, eu não posso me justificar com essa história sentimental, ela vai me mandar à merda.

Fiz outra pausa sincera:

- Eu gostaria de ter um apartamento só pra mim. Gostaria muito mesmo. Mas vamos encarar a realidade: não tenho grana pra isso.
- Qual sua proposta?
- Contar pro seu filho.
- Sem condições.

Eu acreditava no diálogo, estava sendo tão clara e ponderada. Deus, mulher medrosa.

- Agnes, honestamente: ela vai descobrir um dia. Você não precisa ser virgem pra ser mãe. Eu poderia dormir na sua casa, tranquilamente, sem esconder nada. Não seríamos forçadas a transar antes do horário comercial.
- Você é forçada a transar comigo?
- Não desvia do assunto.
- Foi o que você disse.
- Merda, por que você não me escuta?

Quando levantei um pouco a voz, ela disparou sobre mim a verborragia selvagem.

- Não posso te deixar uma noite sozinha que você enche a cara e trepa com qualquer vagabunda. Agora vai bancar a certinha e chegar de mão dada na frente do meu filho? Quer ficar noiva e comprar enxoval? Você é patética, eu não suporto você!
- Eu não trepei com ninguém! Do que você está falando?
- Dessa piranha que te levou bêbada pra uma festa!
- Eu fui na festa mas não transei, porra.
- Duvido!

Ela me empurrou pra fora da cama com raiva, agarrei seu braço mas ela não desistiu, gritava e me chutava com os joelhos, prendi seus braços, ela se revolvia mas não conseguia se soltar. Tentou me morder. Mordi também seu pescoço, o mais forte que pude pra ela se acalmar. Ela começou a chorar.

Sem soltar, sequei suas lágrimas com os lábios e a beijei. Eu chorava também. Eu a amava muito. E também amava aquele apartamento espaçoso, com belos móveis, boa comida, TV a cabo e amplas janelas com vista panorâmica."

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Malboro, o cão / Materialismo Dialético das Lésbicas IV


Eu estava dirigindo e não queria ligar apressada. Quando o farol fechou, respondi por mensagem também: "Que alegria receber teu recado! Estou no carro voltando pra casa. Posso ligar em 30 minutos?". No farol seguinte, salvei seu número na agenda.

Chegando em casa, deixei a bolsa na mesa e fui jogar água no rosto. Sentei perto da janela com o telefone na mão, respirei com calma, tentei imaginar um jeito natural de ligar e dizer "oi" como se estivesse acostumadíssima. O telefone tocou na minha mão e me assustei. Era o nome dela no visor.

- Oi, tudo bem?
- Que rápido! Acabei de chegar em casa.
- Eu não fui trabalhar hoje, fiquei em casa o dia inteiro.
- Perdeu a hora?
- É feriado judaico e a empresa não abre.
- Legal.

Sua voz era rouca e infantil ao mesmo tempo.

- Tá a fim de fazer alguma coisa? - ela perguntou.

De repente apareceu um latido de cachorro e um barulho:
- Ai, peraí!

Ouvi mais barulhos de plástico caindo até que ela voltou.

- Deixei um presunto na pia, e o cachorro derrubou tudo para pegar.
- Cachorro grande?
- É um vira-lata, ele só tem três pernas. Você conhece a praça do Viaduto? Preciso levar ele pra andar um pouco.

Era uma área que estava em reforma, colada ao Viaduto Treze de Maio. Várias casas foram demolidas para construção de outra via de acesso, mas a obra parou com a liminar de um comerciante que se julgou prejudicado pela alteração da rota. Enquanto nada se resolvia, os donos de cães levavam seus bichos, pois era uma área cercada e os cachorros podiam correr à vontade.

Eu não sabia de nada disso, ela contou enquanto explicava o endereço. Era razoavelmente perto de casa, mas provavelmente eu só chegaria depois de escurecer.

- Não tem problema - ela disse. - É sossegado, tem sempre gente.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Materialismo dialético, III


No segundo encontro, ela perguntou:

- Por que você escreveu que procurava uma amiga?

- Acho estranho todo o resto. Encontrar alguém e decidir logo se serve ou não. As expectativas... a pressão de terminar o que nem começou.

- Por que você precisa decidir logo?

- Ah, pois é. Eu adoraria não precisar. Seria excelente, mas simplesmente eu não sou assim.

Fernanda parecia agora subitamente segura. Óculos diferentes, de armação leve, cabelo penteado, a franja presa com uma fivela. Caminhamos algumas quadras em direção a uma livraria, mas desistimos de entrar. Haveria uma palestra, mas eu estava desconcentrada e perdi a vontade de assistir.

Eu disse:

- Olhe, vamos sentar e conversar sobre algum assunto qualquer. A outra noite foi ótima, mas eu bebi demais e realmente não quero transar hoje. Eu lido mal com esses impulsos e preciso me organizar.

- Está bem, vamos conversar sobre um assunto qualquer.

Sentamos na área externa de uma doceria que servia salgados e vinho. Bebi apenas uma taça, e depois chá. Fiquei feliz de me manter sóbria, relaxei, e pacificamente seguimos para meu apartamento. Ela parecia tão doce quando nua. Adormeci sem perceber e durante a noite abri os olhos sonolenta, algumas vezes, esquecida e então lembrando que ela estava ali.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Materialismo dialético das lésbicas, II


Depois de alguns emails descobri seu nome, Fernanda. Marcamos uma cerveja num fim de tarde perto da Augusta.

Pessoas andando pela calçada em clima de paz. Sinto como artigo raro, há alguns anos. Parei à porta do espaço de cinema patrocinado por um banco e esperei olhando as moças que diminuíam o ritmo, buscando reconhecer o rosto da foto que recebera. Um olhar de reconhecimento breve e seguimos para um bar de rua vazio, ali perto. Sua pele era mais escura do que a foto mostrava. Óculos grossos, rosto cansado. Ela trabalhara o dia todo, enquanto eu estava em casa, fazendo coisas em meu modo vago. Eu já sentira outras vezes compaixão por essas moças que trabalham o dia inteiro e depois juntam sua energia para conhecer alguém, o esforço em fim de expediente para ter um pouco de vida. O contraste ainda me espanta de meu próprio privilégio.

Falamos pouco no início. Ela tinha o rosto sério, olhos baixos e contraídos. Cabelo fosco e desajeitado, não senti impulsos carnais. Fiz algumas perguntas de mapeamento, buscando uma fresta de leveza, mas não foi fácil mesmo considerando minha prática razoável nisso. Desisti da cerveja, de todo modo não posso, mais de uma garrafa me enjoa e me engorda, pedi uma dose de aguardente e ela sorriu brevemente. Se a conversa não flui, certo excesso controlado de álcool é prazer suficiente (por isso encontros nunca me frustram). Álcool, suspiro. Minha psicanalista apontava o excesso de razão que me alheia do instante real. Precisaria de muita vigilância para evitar minha vocação ao raciocínio - e depois o instante, quando é forte.

Mais tarde, talvez tenha sido seu olhar de insegurança para mim, talvez a hesitação de avançar ou não sobre esse inclinação aparente de ser capturada, seu rosto já perto do alcance. Ou a linha de seus pelos íntimos na barriga magra de pele desbotada, estendida no chão de seu apartamento pequeno, no fim da noite. Voltei para casa um tanto deslocada.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Materialismo dialético das lésbicas (novo início)


A cidade é grande e existem momentos em que você quer apenas conhecer alguém novo, cuja idade, origem, história e relações sejam totalmente diferentes dos seus. Começar em branco, como se fosse outro país.

Existem muitos caminhos para conhecer pessoas pela internet, eu prefiro os mais distantes e controlados. Um anúncio simples: "Mulher, 38 anos, com gosto por arte e livros, procura amiga lésbica e solteira para sair à noite, conversar e olhar as pessoas." Preferiria não mencionar arte e livros, para evitar o pedantismo, mas há pessoas que se interessam prioritariamente por negócios e esportes, e aprendi por experiência que é melhor especificar.

Olho anúncios em tempo contado, meia hora por dia, de manhã geralmente, raramente à noite. É como caçar, preciso atenção para farejar um potencial objeto de interesse na imensidão de bobagens. Leitura rápida dos perfis, em navegação aleatória; sem priorizar fotos (pessoas bonitas frequentemente se escondem); protegendo-me da falsa esperança de boas surpresas a partir de um perfil medíocre. Se ao fim de meia hora não encontro algo estimulante, arrisco um contato neutro em três ou quatro perfis de informações insuficientes (o excesso de banalidade nunca é desmentido; a brevidade pode indicar inteligência).

Um perfil sem foto, certo dia, mostrava apenas uma frase em inglês: "Are you my mother?" Outras informações sucintas: mulher, 25 anos, terceiro grau incompleto, signo câncer. Poderia ser uma órfã estrangeira perdida no país. Ou, com otimismo, poderia ser uma jovem intelectual e militante, atualizada sobre o lançamento recente nos Estados Unidos do segundo livro de uma conhecida desenhista lésbica de esquerda. Um código, ou laconismo carente. Enviei uma mensagem: "Olá. Se quiser escrever, meu endereço é (...)". Meu email, para esse tipo de atividade, é o nome de um grupo lésbico-feminista de São Paulo na década de 1960, As Graciosas.

Recebi a resposta alguns dias depois. Apenas uma linha: "Oi, tudo bem?"

Naquele dia, seu email competia com a longa apresentação de uma secretária de universidade privada, jovem e redondinha, que nunca tinha saído com mulheres mas tinha muita curiosidade, e as cobranças de uma senhora casada a quem eu dissera não me interessar, que insistia num primeiro encontro alegando ser injusto que eu não me interessasse apenas baseada em uma foto e três emails.

Curiosamente, para muita gente na internet dizer "amiga" ou "amizade" é um eufemismo aceitável para sexo casual. Enquanto as palavras "sexo casual", ao contrário, assustam as mulheres, atraindo geralmente casais em busca de uma parceira para encontros a três.

sábado, 7 de julho de 2012

Cisgenero

"essa tradução da FAQ do livro Whipping Girl da Julia Serano eu mesma fiz ano passado para entrar como bibliografia da disciplina feminismos e teoria queer oferecida pelo NEDIG/CEAM/UnB; o nosso querido núcleo de estudos da diversidade sexual e de gênero." 

http://parlerfemme.wordpress.com/2010/07/13/traducao-a-missao/

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Dussek e as lesbianas

Além do humor bicha-louca, um bom achado sonoro: dizer "lesbianas" é mais agradável ao nosso português nasal.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

quinta-feira, 19 de abril de 2012

segunda-feira, 2 de abril de 2012

segunda-feira, 12 de março de 2012

quinta-feira, 8 de março de 2012