terça-feira, 18 de agosto de 2020

Sem direção - Capítulo dois (parte 1)

Se dependesse de mim, eu teria continuado na escola Maria José quando terminei a oitava série. Na sala do Francemar, da Irani e do Pasqual, eu estava acomodada e segura. Passava cola para os meninos, eles me protegiam. Irani era alta e meio curva, nunca tive um pensamento inadequado sobre ela. Mas minha mãe insistiu que o Caetano de Campos era melhor. Minha mãe, que só interferiu na minha vida para atrapalhar, que nunca pisou na escola e ainda pensava que o Caetano funcionava no antigo prédio da República.

Sou de janeiro. Entrei no Caetano com quinze anos. Magra e pequena, achavam que eu estava ainda no primeiro grau. Não lembro de nenhum nome naquela escola. Alguns rostos sim, não nomes. Eu estava desconfortável, vários alunos foram simpáticos, mas cada aproximação, mesmo que não intencionalmente, me parecia um ataque. Seria óbvio e um pouco simplório interpretar que alguma transformação inconsciente acontecia em mim, e por isso me fechei. Aos quinze anos, meu desconforto era muito mais amplo e profundo que uma tendência incipiente na questão afetiva.

Eu odiava as garotas da minha turma. Achava que desperdiçavam sua inteligência e energia com idiotices: cabelos, trejeitos engraçadinhos, roupas. Pensando hoje, parece inacreditável que as odiasse. Eu não deveria adorá-las? Minha única amiga nessa escola, Vanessa, nunca me perdoou por isso. Foi somente pra ela que contei, no fim do segundo ano, quase aos dezessete anos, que eu tinha te beijado.

- Ontem à tarde - eu disse - dei um beijo na Fernanda.

Ela me olhou emudecida.

- Senti como se de repente tudo estivesse certo, no lugar certo - tentei explicar.

- Você... - ela começou, depois parou. Eu estava triste, apesar de segura. Olhava pro chão. Falei pra ela porque precisava falar com alguém, mas não saltitava de alegria. Algo me preocupava, embora eu não soubesse bem o quê. Vanessa deve ter percebido, porque se conteve, preocupada também, como se eu tivesse revelado que usei heroína ou roubei a aposentadoria de uma velhinha saindo do banco.

- Você beijou de de língua?

Fiz que sim. Em pé, segurando a mochila, ela continuou parada olhando pra mim.

- Por que você nunca falou antes?

- Falar o quê?

- Que você...

- Eu quê?

- Que...

- Que eu gosto da Fernanda? Na verdade... nem sei se gosto dela.

- Você gosta de mim?

A conversa seguia por caminhos confusos e não era de Vanessa que eu queria ou precisava falar. Me irritei que ela levasse o assunto para esse lado, eu precisava de apoio, desabafar, ela só tinha que ouvir. Deixei isso bem claro:

- Vanessa, você é minha amiga. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Em vez de aliviada, ela pareceu contrariada. Talvez um pouco ofendida. Tive preguiça de desfazer o mal-entendido e nas semanas seguintes você me carregou como uma enxurrada. Talvez porque também, no fundo, eu não gostava mesmo dela. Nossa amizade rapidamente esfriou.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sem direção - Capítulo 1

Começo a escrever essa história hoje. Se não começar agora, será difícil enfrentar a vida nos próximos meses. Tenho vinte minutos para escrever, talvez no sábado consiga mais vinte. Só preciso me concentrar nisso: vinte minutos três vezes por semana, o mínimo tempo que vou roubar do meu almoço, uns míseros minutos para conseguir alguma coragem.

Meu rosto apagado dos últimos dias é insuportável, mesmo que eu não o veja, evite me olhar no espelho. Sinto ele por dentro, contraído e cansado. Não tenho tempo, não com essas contas caindo sobre minha cabeça, tudo que preciso resolver nesta casa se desfazendo. Pensei em me concentrar nos problemas, resolver, me organizar de novo, pra depois recomeçar. Mas tenho idade suficiente pra saber que não existe momento puro, tudo está sempre se desmontando, as coisas te atropelam e é melhor não esperar.

Fernanda me mostrou aquela música: meu leito na viração. Só descanso em tempestade. Só adormeço no furacão.

Fernanda não pode saber que estou escrevendo. Posso ver sua explosão de raiva: - Você é louca? Traidora, bandida, saqueadora, minha vida não é sua pra você me expor desse jeito!

Cala a boca, Fernanda, você grita comigo há vinte e cinco anos, é irritante, grosseiro, o lado seu que mais odeio, e é isso que preciso fazer agora, te odiar. Somente com ódio posso ter alguma força ainda.

Sua vida nunca foi minha, nem quando eu queria que fosse. Construí minha vida sozinha e muito cedo, ainda quando acreditava que as vidas não precisam ser sozinhas, que uma força fluía sobre as calçadas para nos reunir, nós que precisávamos de ajuda, nós que merecíamos ficar juntas. Construí meu mundo porque você deixou bem claro, um dia, que sua companhia era um relâmpago e dependia de condições atmosféricas específicas para se manifestar.

Mas a verdade, se chegamos ao fundo dessa história, é que sua vida é minha, sim, porque fui a única testemunha que sobrou. A única que aguentou o mais insuportável, os desaparecimentos e retornos repentinos, pedidos abusados na madrugada, empréstimos, favores, caronas, os monólogos intermináveis.

O que você fez está gravado na minha memória. Talvez só eu tenha a imagem completa, porque só eu fiquei para assistir quando esse filme perdeu o rumo. Seu filme ridículo e angustiante, cômico e erótico, e - diga-se em sua defesa -, totalmente honesto. A sessão da madrugada em que entrei por acaso, e me capturou no instante transformador e iluminado em que meu dedo úmido se comprimiu em sua vagina contraída num orgasmo.