domingo, 12 de junho de 2011

A lenda da literatura feminina

Machismo de Naipaul faz rir, dizem críticas

Debate sobre gênero foi substituído pelo da literatura digital e da produção da periferia

JOSÉLIA AGUIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Há três décadas, uma frase como a de V.S. Naipaul, para quem é possível reconhecer o texto de uma mulher já no primeiro parágrafo, talvez incendiasse o circuito literário brasileiro.

O efeito, porém, foi o mesmo de uma biribinha.

Professoras e críticas procuradas pela Folha para comentar a declaração recente do Nobel de 2001 reagiram com risos, muxoxos e até leve indiferença.
"A coisa pegava fogo na década de 1980", recorda-se Heloisa Buarque de Hollanda, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das mais ativas em júris e debates contemporâneos. "Existem hoje questões mais presentes no debate literário, como a literatura digital e a periferia", explica.

Isso não quer dizer que a temática feminina tenha desaparecido da obra de ficcionistas ou poetas. "Por parte de algumas autoras, é claro que há deliberada intenção de revelar a subjetividade da mulher. É o texto que quer ser assim identificado", ressalta Beatriz Resende, professora na UFRJ e na Unirio.

Os estudos de gênero também continuam a ser uma das linhas de força da crítica, como lembra Maria Esther Maciel, ficcionista, professora na UFMG e parte do atual júri do Prêmio Portugal Telecom. "Eles têm contribuído para a recuperação de escritoras ignoradas ou esquecidas ao longo dos séculos, bem como para a visibilidade de vozes literárias das chamadas minorias sexuais."

O que fez da declaração de Naipaul motivo mais de riso que de siso é a ideia de que há uma "literatura feminina" inescapável pelas autoras.

"O pensamento de Naipul é próximo ao de Rousseau no século 18", avalia Carla Rodrigues, doutora em filosofia, autora de "Coreografias do Feminino".

Sobre a polêmica de Naipaul, a crítica Leyla Perrone-Moisés diz que preferia lembrar o que disse Clarice Lispector: "Quando escrevo, não sou homem nem mulher, sou homem e mulher". Como prova, acrescenta a professora aposentada da USP, o narrador de "A Hora da Estrela" é um homem.

MAN BOOKER PRIZE

A reação das críticas literárias brasileiras é parecida com aquela ocorrida em Londres, na semana passada, quando Naipaul deu tal declaração.
"Estou fora dessa briga", respondeu à Folha a escritora e crítica Carmen Callil, a mesma que, semanas atrás, se retirou do júri que concedeu o Man Booker Prize internacional ao escritor americano Philip Roth.
"E minha decisão sobre Roth não tem a ver com feminismo", repetiu Callil, que fundou a editora feminista Virago em Londres em 1973.

Prêmios como o britânico Orange Prize, dedicado apenas a autoras e cujo resultado saiu na última quinta, não reforçam o preconceito? "Prêmios como esse são tentativas de lembrar às pessoas quais são as condições do mercado", explica John Freeman, editor da Granta, revista literária cujo número atual é todo dedicado a mulheres.
"Nas páginas culturais, onde se levantam ou derrubam prestígios, homens aparecem mais que mulheres", explica.

Freeman acrescenta que "gêneros são rótulos convenientes e, às vezes, formas convenientes, apenas isso".

(FSP, 11 jun. 2011)

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