quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Sem direção - Capítulo 3

Minha mãe trabalhava num laboratório fotográfico na rua São Vicente. Na recepção e agendamento dos clientes, ela não gostava do trabalho, achava que merecia mais. Puxava conversa com os fotógrafos e frequentemente sua chefe reclamava, mas não a demitia porque eram primas. Tudo era urgente para os fotógrafos de publicidade, precisavam sempre de material para o dia seguinte; o laboratório ficava aberto até a meia-noite, às vezes mais. Minha mãe gostava do turno da noite. Morávamos num predinho baixo no fim da Treze de Maio e ela podia voltar pra casa a pé, não importava a hora. O caminho estava sempre cheio de jovens à noite, nas calçadas, roqueiros e alternativos que frequentavam os bares daquele quarteirão do Bixiga. Se encontrava um amigo de sua geração, ela às vezes parava, tomava uma cerveja, fumava um cigarro. Aos dezessete anos, quando minhas amigas queriam sair à noite, eu não tinha vontade. Eram os mesmos bares da esquina do trabalho da minha mãe.

Mesmo assim, uma noite eu fui. É difícil sempre dizer não às amigas. Uma precisava apoiar o entusiasmo da outra. Quem queria realmente era a Patrícia, que tinha se mudado com os pais para o Jabaquara e insistia em sair na sexta-feira, temos dezessete anos, vamos dormir juntas na casa da Valéria, ela dizia. Valéria morava na melhor casa, no começo da rua dos franceses, com grade e um portão novo de aço na garagem. Não dava pra ver nada de fora, mas por dentro era grande. Valéria tinha um quarto só dela. 

Naquela noite comi sozinha, assistindo a novela das seis (minha mãe estava no trabalho). Lavei a louça, coloquei minhas roupas na mochila e desci até a casa da Valéria. Porque ela pediu, pra não repetir as cores, estendi minha roupa na cama, enquanto ela olhava o armário pra escolher o que vestir. Minha blusa branca com listras azuis, a calça jeans clara, eu gostava daquela combinação. Ela achou muito chinfrim pra sair à noite, mas era minha blusa preferida e assim eu me sentia bem. Valéria e Patrícia passaram maquiagem. Saímos às oito e meia para o Café Alcateia, tinha um show marcado às nove. Não sei por que Patrícia escolheu esse lugar, elas não gostavam de rock. O show demorou quase uma hora pra começar e enquanto isso tomamos guaraná. Nos copos parecia cerveja, Patrícia disse orgulhosa. Todos ficavam em pé e achei incômodo. O lugar já estava meio escuro, mas apagaram ainda mais quando finalmente entrou a banda. Uns caras de jeans, camiseta, jaqueta. Cabeludos. Dois deles com bigode, pareciam um pouco uns primos da minha mãe, meus tios em segundo grau que muito raramente eu via no Natal. Começaram a tocar, guitarra e bateria, o salão estreito, som alto, meu ouvido doía. As músicas era desconhecidas pra mim. À nossa volta as mulheres de cabelo super comprido usavam calças bem apertadas na bunda. As garçonetes desarrumadas pareciam atendentes de padaria. Passavam pra lá e pra cá trazendo batatas fritas e cerveja. Todo mundo em pé na frente do palco baixo e apertado. Todos feios os caras da banda, mas Patrícia gritou no meu ouvido (precisou repetir três vezes até eu entender) que o vocalista era lindo. Reconheci duas músicas do The Doors, finalmente, depois de uns vinte minutos de show, mas no fundo achei cafona ouvir esses tipos que pareciam meus tios tocando The Doors. Valéria olhava o vocalista fixamente, eu conhecia aquele olhar quando ela queria seduzir. Tudo me pareceu deprimente e fui embora. Inventei uma desculpa e dei um tchau que elas provavelmente nem escutaram, porque o barulho oprimia qualquer tentativa de conversar. 

Segui a pé pela Treze de Maio, o caminho reto e seguro, naquele quarteirão cheio de bares. Baixei a cabeça, com cara de poucos amigos, pra nenhum cara mexer comigo. O único pedaço mais escuro e vazio era em frente à igreja, onde não tinha nenhum bar. Mas era curto e dava para passar rápido rápido, logo na outra esquina começavam as luzes das cantinas. Segui de cabeça baixa pela calçada vazia quando notei alguém na outra calçada. Olhei pra conferir, poderia ser um homem, talvez perigoso. Tinha uma borracharia ali. A porta de aço estava baixada até a metade. Sentada na soleira, uma moça magra. Certamente era uma moça, mas por um instante tive dúvida, por causa do cabelo preso. Debaixo da luz do poste, ela lia um livro grosso. Eu quis olhar mais, mas ela me notou e fiquei com medo de encarar. Andando rápido logo cheguei no meu prédio. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Sem direção - Capítulo dois (parte 1)

Se dependesse de mim, eu teria continuado na escola Maria José quando terminei a oitava série. Na sala do Francemar, da Irani e do Pasqual, eu estava acomodada e segura. Passava cola para os meninos, eles me protegiam. Irani era alta e meio curva, nunca tive um pensamento inadequado sobre ela. Mas minha mãe insistiu que o Caetano de Campos era melhor. Minha mãe, que só interferiu na minha vida para atrapalhar, que nunca pisou na escola e ainda pensava que o Caetano funcionava no antigo prédio da República.

Sou de janeiro. Entrei no Caetano com quinze anos. Magra e pequena, achavam que eu estava ainda no primeiro grau. Não lembro de nenhum nome naquela escola. Alguns rostos sim, não nomes. Eu estava desconfortável, vários alunos foram simpáticos, mas cada aproximação, mesmo que não intencionalmente, me parecia um ataque. Seria óbvio e um pouco simplório interpretar que alguma transformação inconsciente acontecia em mim, e por isso me fechei. Aos quinze anos, meu desconforto era muito mais amplo e profundo que uma tendência incipiente na questão afetiva.

Eu odiava as garotas da minha turma. Achava que desperdiçavam sua inteligência e energia com idiotices: cabelos, trejeitos engraçadinhos, roupas. Pensando hoje, parece inacreditável que as odiasse. Eu não deveria adorá-las? Minha única amiga nessa escola, Vanessa, nunca me perdoou por isso. Foi somente pra ela que contei, no fim do segundo ano, quase aos dezessete anos, que eu tinha te beijado.

- Ontem à tarde - eu disse - dei um beijo na Fernanda.

Ela me olhou emudecida.

- Senti como se de repente tudo estivesse certo, no lugar certo - tentei explicar.

- Você... - ela começou, depois parou. Eu estava triste, apesar de segura. Olhava pro chão. Falei pra ela porque precisava falar com alguém, mas não saltitava de alegria. Algo me preocupava, embora eu não soubesse bem o quê. Vanessa deve ter percebido, porque se conteve, preocupada também, como se eu tivesse revelado que usei heroína ou roubei a aposentadoria de uma velhinha saindo do banco.

- Você beijou de de língua?

Fiz que sim. Em pé, segurando a mochila, ela continuou parada olhando pra mim.

- Por que você nunca falou antes?

- Falar o quê?

- Que você...

- Eu quê?

- Que...

- Que eu gosto da Fernanda? Na verdade... nem sei se gosto dela.

- Você gosta de mim?

A conversa seguia por caminhos confusos e não era de Vanessa que eu queria ou precisava falar. Me irritei que ela levasse o assunto para esse lado, eu precisava de apoio, desabafar, ela só tinha que ouvir. Deixei isso bem claro:

- Vanessa, você é minha amiga. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Em vez de aliviada, ela pareceu contrariada. Talvez um pouco ofendida. Tive preguiça de desfazer o mal-entendido e nas semanas seguintes você me carregou como uma enxurrada. Talvez porque também, no fundo, eu não gostava mesmo dela. Nossa amizade rapidamente esfriou.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sem direção - Capítulo 1

Começo a escrever essa história hoje. Se não começar agora, será difícil enfrentar a vida nos próximos meses. Tenho vinte minutos para escrever, talvez no sábado consiga mais vinte. Só preciso me concentrar nisso: vinte minutos três vezes por semana, o mínimo tempo que vou roubar do meu almoço, uns míseros minutos para conseguir alguma coragem.

Meu rosto apagado dos últimos dias é insuportável, mesmo que eu não o veja, evite me olhar no espelho. Sinto ele por dentro, contraído e cansado. Não tenho tempo, não com essas contas caindo sobre minha cabeça, tudo que preciso resolver nesta casa se desfazendo. Pensei em me concentrar nos problemas, resolver, me organizar de novo, pra depois recomeçar. Mas tenho idade suficiente pra saber que não existe momento puro, tudo está sempre se desmontando, as coisas te atropelam e é melhor não esperar.

Fernanda me mostrou aquela música: meu leito na viração. Só descanso em tempestade. Só adormeço no furacão.

Fernanda não pode saber que estou escrevendo. Posso ver sua explosão de raiva: - Você é louca? Traidora, bandida, saqueadora, minha vida não é sua pra você me expor desse jeito!

Cala a boca, Fernanda, você grita comigo há vinte e cinco anos, é irritante, grosseiro, o lado seu que mais odeio, e é isso que preciso fazer agora, te odiar. Somente com ódio posso ter alguma força ainda.

Sua vida nunca foi minha, nem quando eu queria que fosse. Construí minha vida sozinha e muito cedo, ainda quando acreditava que as vidas não precisam ser sozinhas, que uma força fluía sobre as calçadas para nos reunir, nós que precisávamos de ajuda, nós que merecíamos ficar juntas. Construí meu mundo porque você deixou bem claro, um dia, que sua companhia era um relâmpago e dependia de condições atmosféricas específicas para se manifestar.

Mas a verdade, se chegamos ao fundo dessa história, é que sua vida é minha, sim, porque fui a única testemunha que sobrou. A única que aguentou o mais insuportável, os desaparecimentos e retornos repentinos, pedidos abusados na madrugada, empréstimos, favores, caronas, os monólogos intermináveis.

O que você fez está gravado na minha memória. Talvez só eu tenha a imagem completa, porque só eu fiquei para assistir quando esse filme perdeu o rumo. Seu filme ridículo e angustiante, cômico e erótico, e - diga-se em sua defesa -, totalmente honesto. A sessão da madrugada em que entrei por acaso, e me capturou no instante transformador e iluminado em que meu dedo úmido se comprimiu em sua vagina contraída num orgasmo.