Começo a escrever essa história hoje. Se não começar agora, será difícil enfrentar a vida nos próximos meses. Tenho vinte minutos para escrever, talvez no sábado consiga mais vinte. Só preciso me concentrar nisso: vinte minutos três vezes por semana, o mínimo tempo que vou roubar do meu almoço, uns míseros minutos para conseguir alguma coragem.
Meu rosto apagado dos últimos dias é insuportável, mesmo que eu não o veja, evite me olhar no espelho. Sinto ele por dentro, contraído e cansado. Não tenho tempo, não com essas contas caindo sobre minha cabeça, tudo que preciso resolver nesta casa se desfazendo. Pensei em me concentrar nos problemas, resolver, me organizar de novo, pra depois recomeçar. Mas tenho idade suficiente pra saber que não existe momento puro, tudo está sempre se desmontando, as coisas te atropelam e é melhor não esperar.
Fernanda me mostrou aquela música: meu leito na viração. Só descanso em tempestade. Só adormeço no furacão.
Fernanda não pode saber que estou escrevendo. Posso ver sua explosão de raiva: - Você é louca? Traidora, bandida, saqueadora, minha vida não é sua pra você me expor desse jeito!
Cala a boca, Fernanda, você grita comigo há vinte e cinco anos, é irritante, grosseiro, o lado seu que mais odeio, e é isso que preciso fazer agora, te odiar. Somente com ódio posso ter alguma força ainda.
Sua vida nunca foi minha, nem quando eu queria que fosse. Construí minha vida sozinha e muito cedo, ainda quando acreditava que as vidas não precisam ser sozinhas, que uma força fluía sobre as calçadas para nos reunir, nós que precisávamos de ajuda, nós que merecíamos ficar juntas. Construí meu mundo porque você deixou bem claro, um dia, que sua companhia era um relâmpago e dependia de condições atmosféricas específicas para se manifestar.
Mas a verdade, se chegamos ao fundo dessa história, é que sua vida é minha, sim, porque fui a única testemunha que sobrou. A única que aguentou o mais insuportável, os desaparecimentos e retornos repentinos, pedidos abusados na madrugada, empréstimos, favores, caronas, os monólogos intermináveis.
O que você fez está gravado na minha memória. Talvez só eu tenha a imagem completa, porque só eu fiquei para assistir quando esse filme perdeu o rumo. Seu filme ridículo e angustiante, cômico e erótico, e - diga-se em sua defesa -, totalmente honesto. A sessão da madrugada em que entrei por acaso, e me capturou no instante transformador e iluminado em que meu dedo úmido se comprimiu em sua vagina contraída num orgasmo.
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