Minha mãe trabalhava num laboratório fotográfico na rua São Vicente. Na recepção e agendamento dos clientes, ela não gostava do trabalho, achava que merecia mais. Puxava conversa com os fotógrafos e frequentemente sua chefe reclamava, mas não a demitia porque eram primas. Tudo era urgente para os fotógrafos de publicidade, precisavam sempre de material para o dia seguinte; o laboratório ficava aberto até a meia-noite, às vezes mais. Minha mãe gostava do turno da noite. Morávamos num predinho baixo no fim da Treze de Maio e ela podia voltar pra casa a pé, não importava a hora. O caminho estava sempre cheio de jovens à noite, nas calçadas, roqueiros e alternativos que frequentavam os bares daquele quarteirão do Bixiga. Se encontrava um amigo de sua geração, ela às vezes parava, tomava uma cerveja, fumava um cigarro. Aos dezessete anos, quando minhas amigas queriam sair à noite, eu não tinha vontade. Eram os mesmos bares da esquina do trabalho da minha mãe.
Mesmo assim, uma noite eu fui. É difícil sempre dizer não às amigas. Uma precisava apoiar o entusiasmo da outra. Quem queria realmente era a Patrícia, que tinha se mudado com os pais para o Jabaquara e insistia em sair na sexta-feira, temos dezessete anos, vamos dormir juntas na casa da Valéria, ela dizia. Valéria morava na melhor casa, no começo da rua dos franceses, com grade e um portão novo de aço na garagem. Não dava pra ver nada de fora, mas por dentro era grande. Valéria tinha um quarto só dela.
Naquela noite comi sozinha, assistindo a novela das seis (minha mãe estava no trabalho). Lavei a louça, coloquei minhas roupas na mochila e desci até a casa da Valéria. Porque ela pediu, pra não repetir as cores, estendi minha roupa na cama, enquanto ela olhava o armário pra escolher o que vestir. Minha blusa branca com listras azuis, a calça jeans clara, eu gostava daquela combinação. Ela achou muito chinfrim pra sair à noite, mas era minha blusa preferida e assim eu me sentia bem. Valéria e Patrícia passaram maquiagem. Saímos às oito e meia para o Café Alcateia, tinha um show marcado às nove. Não sei por que Patrícia escolheu esse lugar, elas não gostavam de rock. O show demorou quase uma hora pra começar e enquanto isso tomamos guaraná. Nos copos parecia cerveja, Patrícia disse orgulhosa. Todos ficavam em pé e achei incômodo. O lugar já estava meio escuro, mas apagaram ainda mais quando finalmente entrou a banda. Uns caras de jeans, camiseta, jaqueta. Cabeludos. Dois deles com bigode, pareciam um pouco uns primos da minha mãe, meus tios em segundo grau que muito raramente eu via no Natal. Começaram a tocar, guitarra e bateria, o salão estreito, som alto, meu ouvido doía. As músicas era desconhecidas pra mim. À nossa volta as mulheres de cabelo super comprido usavam calças bem apertadas na bunda. As garçonetes desarrumadas pareciam atendentes de padaria. Passavam pra lá e pra cá trazendo batatas fritas e cerveja. Todo mundo em pé na frente do palco baixo e apertado. Todos feios os caras da banda, mas Patrícia gritou no meu ouvido (precisou repetir três vezes até eu entender) que o vocalista era lindo. Reconheci duas músicas do The Doors, finalmente, depois de uns vinte minutos de show, mas no fundo achei cafona ouvir esses tipos que pareciam meus tios tocando The Doors. Valéria olhava o vocalista fixamente, eu conhecia aquele olhar quando ela queria seduzir. Tudo me pareceu deprimente e fui embora. Inventei uma desculpa e dei um tchau que elas provavelmente nem escutaram, porque o barulho oprimia qualquer tentativa de conversar.
Segui a pé pela Treze de Maio, o caminho reto e seguro, naquele quarteirão cheio de bares. Baixei a cabeça, com cara de poucos amigos, pra nenhum cara mexer comigo. O único pedaço mais escuro e vazio era em frente à igreja, onde não tinha nenhum bar. Mas era curto e dava para passar rápido rápido, logo na outra esquina começavam as luzes das cantinas. Segui de cabeça baixa pela calçada vazia quando notei alguém na outra calçada. Olhei pra conferir, poderia ser um homem, talvez perigoso. Tinha uma borracharia ali. A porta de aço estava baixada até a metade. Sentada na soleira, uma moça magra. Certamente era uma moça, mas por um instante tive dúvida, por causa do cabelo preso. Debaixo da luz do poste, ela lia um livro grosso. Eu quis olhar mais, mas ela me notou e fiquei com medo de encarar. Andando rápido logo cheguei no meu prédio.
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