quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Documentos estáveis


"Tinha um grupo de três machonas na minha escola, quando fiz a oitava série. Passavam o intervalo no canto da quadra, em pé, encostadas à parede, conversando entre elas. Mudei de escola no colegial e demorei  reconhecer os novos grupos. Fiquei amiga de uma garota que raspava o cabelo e usava coturnos. Fora da escola ela tinha amigos sempre de preto, com os mesmos coturnos de sola gasta. Fui com eles em alguns shows punk, mas havia quase só homens, as meninas não ficava entre elas. Não havia grupos gays na minha escola. Dois garotos afeminados andavam isolados e eram meio reativos, esnobavam com alguma agressividade as gozações dos outros. Aos poucos consegui conversar com eles, que me contaram sobre os bares em São Paulo. Segundo eles, nada valia a pena em Osasco. Fui amiga desses garotos enquanto permaneci na escola, mas sem intimidade. Eram fúteis e debochados, corporais demais em suas referências masculinas, que aprendi a reconhecer mas não conseguia admirar. No cursinho conheci o Marcos, que se tornou quase um irmão, e através dele a primeira garota lésbica com quem pude conversar e sair. Não éramos apaixonadas, mas durante dois anos funcionou nosso acordo de carícias ocasionais. Ela morava do outro lado da rodovia Castelo Branco e algumas vezes dormia em minha casa. Meus pais concordavam, as ruas são perigosas à noite.

Para conhecer mulheres é preciso certa coragem, é o que se aprende no começo da carreira. Coragem para se aproximar e tomar a iniciativa, e casca grossa para negativas. Eu não gostava das frases de efeito e elogios baratos de aproximação, mas precisei praticar alguns, encontrar aqueles que menos agredissem minhas necessidades de honestidade e elegância. Eu pensava que, se fosse homem, seria um dândi. Estaria sempre no limite indefinido entre o masculino e o feminino, e não poderia nunca agir como a caminhoneira clássica. Eu gostava de gays. Preferia homens femininos a mulheres masculinas.  

Alugar um apartamento foi menos difícil do que eu previa. O mundo responde bem a documentos estáveis: contracheque, declaração de imposto de renda, comprovante de  rendimentos do fiador e a respectiva matrícula no registro de imóveis. Foram duas semanas para os trâmites do contrato e recebi as chaves, quarenta dias depois de deixar Agnes. Eu não tinha móveis, mas meu pai conseguiu quase tudo nos depósitos que frequentava. Fez algumas trocas, substituiu as peças envelhecidas e instalou tudo para mim. Ele conhecia as madeiras de qualidade. Comprei novos apenas os eletrodomésticos da linha branca: geladeira, micro-ondas e máquina de lavar. Aproveitamos um fogão usado que o pai ainda guardava na oficina. Quando tudo estava montado, olhei aquele apartamento inteiro que agora era meu, e senti certo orgulho por ver organizado o novo espaço a partir de quase nada. Era janeiro de 2005, eu ainda estava de férias. Patrícia e Heloísa viajaram em seguida para Ilhabela. Elas ficaram em São Paulo nas primeiras semanas do ano apenas para me ajudar, esperando para assinar o contrato com a imobiliária. Liguei para Melissa pouco antes do Natal. Contei que estava me separando, e por isso não telefonara antes.

- Então, quer marcar alguma coisa? - ela perguntou.
- Não sei se dou conta. Não estou muito bem ainda.
- Dá conta de quê?

Foi tão despachada que eu ri, uma das poucas risadas naquelas semanas.

- Você acha que vou te agarrar contra a vontade ou alguma coisa assim?
- Até que não seria mau - respondi.

Marcamos para o dia seguinte num bar que ela sugeriu. Mas nesse encontro houve certa timidez. Eu não podia beber muito porque ainda estava o sítio de Heloísa em São Lourenço da Serra."

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