"Naquele tempo, as mulheres aproveitavam o carnaval para usar suas calças compridas, camisas, gravatas, caracterizando-se de homem para serem melhor identificadas pelas outras mulheres, as "passivas". O carnaval nos clubes marcava momentos grandiosos na vida das lésbicas, que se fantasiavam de Zorro, de caubói, usavam máscaras, cortavam os cabelos rente na nuca, riscavam bigodes com lápis de sobrancelhas e até costeletas. Era a liberdade. (...) A orquestra atacava os sambas e marchas, as serpentinas riscavam o ar, confetes atapetavam o chão, e as lésbicas confinavam-se no toalete. E para lá iam, atraídas, as que tinham tendências para eclodir durante os três maravilhosos dias festivos. (...)
Eu sabia da fama do Arakan, dos bailes nos salões do aeroporto, e fui para lá com um grupo da faculdade. (...)
Eu as vi chegando [as machonas], ressabiadas, como que disfarçadamente, de braço com homens, subindo as escadas que conduziam aos salões do aeroporto; de braço com bichas, para tentarem passar pela portaria. O comentário de que seria proibida a entrada de homossexuais no Arakan já se espalhara havia meses.
Eu já atravessara a porta e vi o homem descer correndo em direção ao grupo que entregava ao porteiro os ingressos, gritando, neurastênico, brecando a entrada delas:
- Não deixe entrar, devolva os ingressos, devolva o dinheiro; "paraíbas" aqui não entram.
(...) Meu carnaval estava estragado. Virou quaresma. O espetáculo era triste demais para mim. A bicha, gritando com a sua voz esganiçada coisas que eu nunca ouvira antes, sendo posta para fora; a machona, carregada pelos guardas escada abaixo.
(...)
Meti-me sob o palanque e fiquei assistindo ao desfile. Observei e tomei nota de todos os movimentos do grupo. A "rainha" a todo instante debruçava-se para Manville, que lhe dava tapinhas no rosto, nas mãos, nos ombros, assegurando-lhe que o reinado seria seu, ele estava ali para garantir. Todos percebiam a mamata, o concurso era uma fajutagem.
- São todas da viração. Vêm das boates Lalicorne, Big Holliday, La Vie en Rose... todas com os os seus "coronéis". Depois, elas vão ao toalete e a gente papa uma por uma.
Ouvi e nem fiz questão de saber quem estava falando; nem mesmo procurei saber quem eram elas e por que não levavam outro tipo de vida. (...) Ouvi risadas, cochichos, desmentidos, desacatos, desafios e brigas entre casaizinhos de lésbicas ciumentas."
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Cassandra Rios, "Eu sou uma lésbica", pp. 95-101. Azougue Editorial, 2006.
Publicado originalmente como folhetim na revista "Status", em 1980.
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