"Nos séculos precedentes, a maior parte das mulheres tinha duas ou três blusas, uma camisola, duas saias; no inverno usavam tudo ao mesmo tempo, no verão essas roupas cabiam num quadrado de algodão com as pontas amarradas. Era com isso que elas iam se alugar ou se casar. Hoje as mulheres devem ter duzentas e cinquenta vezes mais roupas que duzentos anos atrás. Mas a permanência da mulher na casa é da mesma natureza. Trata-se, sempre, de uma existência que parece estar escrita, já estar escrita, mesmo a seus próprios olhos. Uma espécie de papel, no sentido habitual do termo, só que ela o desempenharia inevitavelmente, quase sem ter consciência dele: assim, no teatro da solidão profunda que é o de sua vida ao longo dos séculos, a mulher viaja. Essa viagem não são as guerras nem a cruzada, é uma viagem no interior da casa, da floresta, e de sua cabeça crivada de crenças, muitas vezes enferma, doente. Neste último caso ela é promovida a feiticeira, como você, como eu, e é queimada. Durante determinados verões, determinados invernos, determinadas horas de determinados séculos, as mulheres se foram com a passagem do tempo, a luz, os ruídos, o movimento dos animais nas touceiras, os gritos dos pássaros. O homem não está ao corrente dessas partidas das mulheres. O homem não pode estar ao corrente dessas coisas. O homem está ocupado num serviço, num ofício, tem uma responsabilidade que jamais abandona, que o faz nada saber das mulheres, nada da liberdade das mulheres. Muito cedo na história, o homem deixa de ter liberdade. Durante muito tempo ao longo dos séculos os homens próximos às mulheres são os empregados de granjas; muitas vezes são retardados, risonhos, moídos a pancadas, impotentes. Ficam lá no meio das mulheres fazendo-as rir, e elas, elas os escondem, elas os salvam da morte. Em determinadas horas dos dias desses séculos, os pássaros solitários piavam no escuro claro de antes do desaparecimento da luz. Já então a noite caía depressa ou lenta, era conforme os dias da estação, conforme o estado do céu ou do terrível ou suave pesar que tívessos no coração."
(A vida material, de Marguerite Duras, trad. Heloísa Jahn.)
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