terça-feira, 12 de março de 2013

Inconscientes e agrupadas


Melissa contou coisas diferentes do que eu ouvira antes. Tivera fases de depressão clínica, não apenas tristezas, que foram o real motivo do atraso no curso de Direito. Frequentou psicólogos, tomou remédios, experimentou tratamentos diferentes. Tinha uma interpretação complexa desses problemas, esforçando-se em distinguir os traços da doença de um sofrimento existencial mais interno. Mostrou alguns discos preferidos, tristes demais. Identificava-se com um compositor dos anos 1960, que acreditou no aprofundamento da percepção através de drogas alucinógenas, mas se desagregou, esteve internado num hospital psiquiátrico, jogou-se da janela do terceiro andar e sobreviveu com sequelas. Produziu ainda um último disco, sozinho ao piano, com versos em inglês, comovente e desalentador.

Nos momentos de maior abatimento, ao longo dos anos, ela escrevera páginas soltas que ainda guardava em seu antigo quarto na casa dos pais. Depois de contar isso com lentidão, disse que a única coisa que realmente desejou foi escrever, porém sentia-se incapaz. Pedi que me mostrasse os textos. Num domingo foi à casa dos pais e buscou. Fui compadecida pela leitura, e percebi como estava enganada em qualquer julgamento que tivesse sobre Melissa.

"Fui ao Rio de Janeiro buscar algum dinheiro com um tio paterno de Guilherme. Na última visita à clínica, eu comentei que estava perdendo muito, não conseguia me organizar, o que meus pais mandavam por mês desaparecia em algumas semanas. Guilherme disse que certamente seu tio paterno ajudaria, ele via com clareza e entendia as prioridades. Explicou onde estava o número do telefone na agenda do apartamento. Liguei com muita vergonha mas o tio não se espantou, foi receptivo e ouviu tudo o que eu disse. Ele poderia me dar algo, mas em espécie, em dólares, se eu fosse buscar. Fui de ônibus ao Rio e peguei o metrô para chegar ao apartamento dele em Botafogo. Na volta, com os dólares na mochila, pouco depois das cinco da tarde, vi uma faixa rosa na plataforma chão, "vagão reservado para mulheres, das 17h00 às 20h00, conforme lei estadual". A plataforma foi enchendo de mulheres. Quando entrei no vagão, só mulheres à volta, com exceção de um tipo meio alheio, alcoólatra e perdido no mundo. Tive uma reação corpórea, não ocidental nem contemporânea. Me sentia protegida num tempo arcaico e cego, numa caravana de beduínos, num trem rumo ao campo de concentração. Um vagão em que estávamos reunidas e guardadas mas inconscientes, agrupadas, vulneráveis a qualquer bando que nos arrastasse aprisionadas dali."

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