domingo, 28 de outubro de 2012

Uma conquista admirável

Eu adoro mudar o contexto dos personagens e reescrever cenas. É incrível como as coisas se encaixam. Em vez de duas jovens descobrindo a vida, uma lésbica faixa-magenta apaixonada por uma ex-hetero recém divorciada. Trocam-se os detalhes e a história ainda funciona.

"As mesas estavam vazias e sentei no lado de fora. Agnes chegou com sua roupa de ginástica e falou algumas coisas da escola do filho. Então contei da corretora de investimentos que eu tinha encontrado na noite anterior.

- Corretora?
- Ele administra investimentos de uns milionários. Chegou com um bando de mulher fina lá no bar da Odete. Me convidaram pra uma festa.
- Quando?
- Ontem mesmo.
- E você foi?
- Fui.

Ela ficou quieta e depois me olhou desconfiada:

- Como assim, você foi?
- Eu fui. Você estava jantando com a sua mãe e eu não tinha nada pra fazer.

Ela quebrou uns palitos de dente. Estava repentinamente brava.

- Por que você me conta essas coisas?
- Achei que você ia gostar.
- Merda.

Eu estava com muita vontade de chegar perto dela, e com fome também. Mas não podia pedir nada enquanto ela estivesse magoada daquele jeito.

- Agnes, desculpa. Eu tava sozinha. Era um bar. Essas coisas acontecem. Minha mulher é você.

Ela foi se acalmando e segurei sua mão. Ficamos assim algum tempo e então ela perguntou se eu queria comer. Eu bem queria, mas meus dez reais eram uma triste piada. Olhei o cardápio pra checar o preço do pão de queiro. Agnes ficou boazinha e pediu um pedaço de torta pra mim.

- - -


Nós precisávamos de um lugar. Minha linda kitchinete divida com o Marcos não ia rolar. Agnes não estava acostumada com gays. Ela estranhava os dois abraçados, um no colo do outro, se encoxando de brincadeira enquanto cozinhavam. Elas até simpatizava, mas ficava envergonhada e não conseguia relaxar. Sentava encolhida, não me beijava direito, não queria transar quando eles estavam lá. A cortina de lona que sempre serviu perfeitamente pra separar nossas transas era exposição excessiva pra ela, que precisava de um cômodo hermeticamente isolado do mundo exterior pra ter coragem de se soltar. Eu me atrasava no trabalho quatro vezes por semana, para transarmos às sete e meia da manhã, depois que o filho dela saía pra escola. Agnes queria que eu alugasse um apartamento só pra mim.

- Vai acabar com o meu salário. Não vou ter grana pra nada.
- Eu te ajudo - ela dizia.

Eu não ia assinar um contrato e depender do dinheiro dela. Apesar da sedução arrebatadora daquele corpo feminino e macio, eu considerava importante manter as portas desobstruídas e sinalizadas com barras antipânico. Mesmo imaginando um negócio fantástico que eu pudesse pagar sozinha, meu salário era baixíssimo e as chances eram mínimas.

Primeiro tentei o método tradicional: apartamentos vazios, oficialmente disponibilizados por seus proprietários para alugar. Andei por algumas travessas na baixa Augusta, olhava as placas e pedia para visitar. Eu não me importava com a qualidade, perguntava apenas o valor e as condições do contrato. As imobiliárias eram obsessivas com a palavra fiador e isso me deprimia. Minha família não estava no Estado de São Paulo há tempo suficiente para possuir nada na capital, e pedir para Agnes não era uma opção, pois eu queria que ela fosse minha mulher, não minha mãe ou alma caridosa.

Eu tinha orgulho de ter saído de Osasco, ter meu emprego e um lugar para morar no centro de São Paulo, onde havia gente iteligente e uma vida gay de dimensões suficientes para eu praticamente esquecer que havia um mundo não-gay. Eu tinha orgulho de ter conhecido Agnes, delicada e cheirosa, no momento perfeito em que ela estava divorciada e disposta a um novo amor - que podia ser justamente eu. Eu pretendia levar essa história até onde fosse possível, ignorando o fato de ela ser doze anos mais velha, e morar num apartamento bonito, e ter um emprego que pagava cinco vezes mais que meu salário. E um filho que poderia ser meu irmão temporão.

Andando sozinha, encontrei uma kitchinete sebosa numa travessa obscura atrás do Hospital Sírio Libanês. Preço acessível pelo motivo mencionado. Fui até o escritório do proprietário, que demonstrou gentileza surpreendente. Compreendeu que eu era recém-formada, a primeira da família a concluir um curso universitário, trabalhava como assistente pedagógica numa escola respeitada de classe média alta, era uma conquista admirável pra quem nasceu onde eu nasci. Meus pais moravam num conjunto habitacional em Osasco, o apartamento seria próprio e eles podiam ser fiadores se ele aceitasse o contrato de financiamento com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional como comprovante. Que espírito aberto, que disposição ao bom senso. Dentes bem alinhados, mãos macias segurando meu braço e oferecendo toda disponibilidade para ajudar. Disponibilidade deslizante e úmida. Nanão. Saí fora.

O Daniel e o Marcos ainda vieram com duas opções: uma república de uruguaias lésbicas e maconheiras, perto do aeroporto. Marcos conheceu as meninas no Clube Massivo e mostrou as fotos entusiasmado. Pela imagem desconfiei que não faziam muita questão de banho.

- Marcos, sem chance. Sou pobre mas limpinha.

Outra solução era morar no fundo de uma casa enorme e vazia, usada eventualmente em raves que andavam na moda entre os riquinhos da cidade. Ela conhecia o organizador do lance, colega de um primo que praticava tráfico sem fins lucrativos entre descolados.

- Mas, Marcos... quantas festas rolam?
- Ah, é improvisado. Me avisam pelo celular a cada dez, quinze dias.
- Meu lindo, cai na real: eu sou um jovem intelectual. Pobre mas intelectual. Admiro escrivaninhas limpas e louça lavada. Não vou morar numa Woodstock domiciliar da elite paulistana.


- - -

Uma opção óbvia seria contar para o Bruno, filho da Agnes. Afinal ela estava divorciada havia dois anos e tinha o direito teórico de levar seu par romântico para casa. Mas aí vinha o problema de o par romântico ser uma mulher.

- Quando você contar pra sua mãe, eu conto pro meu filho - Agnes dizia.
- Eu conto, claro. Vamos curtir duas horas de trânsito e transar na casa dela.

Agnes se irritava, passava dias sem me ligar. Quando voltávamos a conversar, era sempre a mesma briga sobre ela assumir ou não assumir, se estava de brincadeira comigo, ou só estava me usando pra matar a carência e não tinha a menor intenção de nunca me incluir em sua vida real. Discutíamos pelo telefone durante horas depois que Bruno ia dormir, e no dia seguinte eu chegava na casa dela às sete e meia da manhã, depois que Bruno ia para escola, e transávamos loucamente e chorávamos abraçadas até eu sair para o trabalho.

Eu não conseguia entender sua barreira. Ela era feminista, militante, tinha várias amigas lésbicas e dizia com segurança que só casou com um homem porque na juventude não tinha referências para sequer imaginar que existisse uma vida homossexual possível. Suas roupas habituais, desde quando era casada, seriam sossegadamente aceitas numa comunidade: cabelo curto, sem maquiagem, camisa de botão e sandálias alemãs. Não era tudo evidente? Por que ela não podia contar o que o filho naturalmente iria descobrir? Não era mais fácil explicar agora, enquanto ele ainda era criança, do que esperar a adolescência quando tudo seria mais difícil?

- - -

Um dia juntei toda minha serenidade. Eram oito e quinze da manhã, estávamos peladas, abraçadas na cama dela, depois de quarenta minutos de atividade aeróbica.

Fiz uma pausa. Comecei.

- Agnes, nosso esquema não está funcionando. Eu me atraso para o trabalho todos os dias. Eu ganho pouco mas eu gosto de lá, tem muita coisa pra eu fazer e crescer. A dona da escola é compreensiva mas tudo tem limite, eu não posso me justificar com essa história sentimental, ela vai me mandar à merda.

Fiz outra pausa sincera:

- Eu gostaria de ter um apartamento só pra mim. Gostaria muito mesmo. Mas vamos encarar a realidade: não tenho grana pra isso.
- Qual sua proposta?
- Contar pro seu filho.
- Sem condições.

Eu acreditava no diálogo, estava sendo tão clara e ponderada. Deus, mulher medrosa.

- Agnes, honestamente: ela vai descobrir um dia. Você não precisa ser virgem pra ser mãe. Eu poderia dormir na sua casa, tranquilamente, sem esconder nada. Não seríamos forçadas a transar antes do horário comercial.
- Você é forçada a transar comigo?
- Não desvia do assunto.
- Foi o que você disse.
- Merda, por que você não me escuta?

Quando levantei um pouco a voz, ela disparou sobre mim a verborragia selvagem.

- Não posso te deixar uma noite sozinha que você enche a cara e trepa com qualquer vagabunda. Agora vai bancar a certinha e chegar de mão dada na frente do meu filho? Quer ficar noiva e comprar enxoval? Você é patética, eu não suporto você!
- Eu não trepei com ninguém! Do que você está falando?
- Dessa piranha que te levou bêbada pra uma festa!
- Eu fui na festa mas não transei, porra.
- Duvido!

Ela me empurrou pra fora da cama com raiva, agarrei seu braço mas ela não desistiu, gritava e me chutava com os joelhos, prendi seus braços, ela se revolvia mas não conseguia se soltar. Tentou me morder. Mordi também seu pescoço, o mais forte que pude pra ela se acalmar. Ela começou a chorar.

Sem soltar, sequei suas lágrimas com os lábios e a beijei. Eu chorava também. Eu a amava muito. E também amava aquele apartamento espaçoso, com belos móveis, boa comida, TV a cabo e amplas janelas com vista panorâmica."

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Malboro, o cão / Materialismo Dialético das Lésbicas IV


Eu estava dirigindo e não queria ligar apressada. Quando o farol fechou, respondi por mensagem também: "Que alegria receber teu recado! Estou no carro voltando pra casa. Posso ligar em 30 minutos?". No farol seguinte, salvei seu número na agenda.

Chegando em casa, deixei a bolsa na mesa e fui jogar água no rosto. Sentei perto da janela com o telefone na mão, respirei com calma, tentei imaginar um jeito natural de ligar e dizer "oi" como se estivesse acostumadíssima. O telefone tocou na minha mão e me assustei. Era o nome dela no visor.

- Oi, tudo bem?
- Que rápido! Acabei de chegar em casa.
- Eu não fui trabalhar hoje, fiquei em casa o dia inteiro.
- Perdeu a hora?
- É feriado judaico e a empresa não abre.
- Legal.

Sua voz era rouca e infantil ao mesmo tempo.

- Tá a fim de fazer alguma coisa? - ela perguntou.

De repente apareceu um latido de cachorro e um barulho:
- Ai, peraí!

Ouvi mais barulhos de plástico caindo até que ela voltou.

- Deixei um presunto na pia, e o cachorro derrubou tudo para pegar.
- Cachorro grande?
- É um vira-lata, ele só tem três pernas. Você conhece a praça do Viaduto? Preciso levar ele pra andar um pouco.

Era uma área que estava em reforma, colada ao Viaduto Treze de Maio. Várias casas foram demolidas para construção de outra via de acesso, mas a obra parou com a liminar de um comerciante que se julgou prejudicado pela alteração da rota. Enquanto nada se resolvia, os donos de cães levavam seus bichos, pois era uma área cercada e os cachorros podiam correr à vontade.

Eu não sabia de nada disso, ela contou enquanto explicava o endereço. Era razoavelmente perto de casa, mas provavelmente eu só chegaria depois de escurecer.

- Não tem problema - ela disse. - É sossegado, tem sempre gente.